"Deixe-me sair, gente boa, para eu viver um pouco no mundo! Eu vivi sem viver. Minha vida foi gasta em vão; foi bebida num botequim na Sênnaia. Deixe-me sair, gente boa, para eu viver novamente no mundo!...”
Sempre tive curiosidade de conhecer as obras de Dostoiévski por todos os adjetivos que seus admiradores fazem questão de espalhar por aí. Pensei que começaria por “Crime e Castigo”, mas acabei optando por conhecer o autor através de sua obra “Notas do Subsolo” ou “Memórias do Subsolo”.
Trata-se de uma novela. Um texto curto, bem estruturado e dividido em 2 partes. Na primeira parte, que é chamada de “O Subsolo”, mergulhamos destemidamente no universo de um homem das sombras, aquele que se recusa a aceitar toda a hipocrisia da sociedade.
Admirador da humanidade, porém que abomina seu lado sombrio, o narrador-personagem não nos diz o seu nome, porque diz que aqueles escritos serão apenas um desabafo. Desta forma, esse narrador relata, sem nenhum pudor, seu lado mais obscuro. Aos 40 anos, morador de São Petersburgo, Rússia, ele se apresenta como um aposentado que possui uma doença no fígado. Considera-se um homem mau, mas depois conclui que não é nada, nem mau nem bom. Através de um monólogo irônico, a sensação causada por suas palavras fere nosso ego, sentimo-nos dissecados e uma vergonha gigantesca nos invade, porque ele tem coragem de expor todo aquele lado podre que todos nós lutamos tanto para dominar e preferimos fingir que não existe.
A segunda parte do livro é chamada de "A propósito da neve molhada", onde o narrador-personagem nos apresenta duas situações que reafirmam todo o lado sombrio que foi capaz de nos revelar no primeiro momento da obra. A primeira, trata-se de seu desespero por ser aceito em um grupo de amigos de infância. Ele se convida para uma confraternização de despedida de um deles e sofre com o desprezo com o qual é tratado. Seu desespero é tamanho que o narrador chega a ser inconveniente, nos revelando seus pensamentos, sua angústia e seu delírio durante o ocorrido. Após isso, encontra Liza, uma prostituta onde ele se revela como um admirador do ser humano e sua capacidade de amar. Porém, seu sentimento de inferioridade é tão grande que logo decide usá-la para se sentir superior e rebela-se deixando em evidência toda a frustração perante a uma sociedade que não o valoriza e apenas o ignora.
Terminamos a leitura envergonhados por percebermos que um dia nossa alma foi despida daquela forma. Nossos conflitos, questionamentos, o medo da humilhação, a busca pela superioridade e o reconhecimento da inferioridade do outro para que possamos nos sentir mais seguros diante da sociedade, são as principais sombras que o autor faz questão de atirar contra nosso ego.
Talvez você termine essa leitura com a sensação de que nunca mais verá a si mesmo e aos outros da mesma forma. Se terminar incomodado, perturbado e chocado com obscuridade do ser humano, saiba que conseguiu absorver a essência do livro.
O livro é considerado o fundador do existencialismo, além de ter servido de fonte para os estudos de Freud e Nietzsche. Filosofia, poesia e repulsa se misturam e formam o coquetel perfeito para revelarem todos os monstros que habitam nossa humanidade. Publicado em 1864, apresenta-nos um fluxo de consciência intenso e perturbador e um anti-herói que mergulha profundamente em seu subconsciente e nos revela tanto sobre ele mesmo, quanto sobre nós!
Quotes
"Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. "
"Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos!"
"Explico-lhes: o deleite aqui derivava precisamente da consciência excessivamente clara de minha humilhação; de que você sente que já chegou ao derradeiro limite; que isso é detestável, mas também, que outra coisa é impossível; que você já não tem saída, já não pode mudar. Mesmo se ainda restasse tempo e fé para se transformar em algo diferente, provavelmente você mesmo não iria querer se transformar; e, se quisesse, ainda assim não faria nada, porque talvez não houvesse no que se transformar. Mas o principal e o fim derradeiro é que tudo isso transcorre de acordo com as leis normais e básicas da consciência amplificada e pela inércia derivada diretamente dessas leis e, consequentemente, nesse caso não só não é possível transformar-se, como simplesmente não se pode fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em consequência da consciência amplificada: você está certo em ser um patife, como se fosse consolo para um patife se ele mesmo já percebe que é realmente um patife. Mas basta de... Ora, falei pelos cotovelos e o que expliquei? Como se explica o deleite nesse caso? Mas hei de explicar-me! Irei até o fim! Foi para isso que peguei a pena...
"chega, finalmente, à coisa em si, ao próprio ato de vingança. O infeliz camundongo, além da sujeira inicial, já conseguiu mergulhar em um monte de outras sujeiras na forma de perguntas e dúvidas; a uma única questão acrescentou tantas outras não respondidas que, independentemente de sua vontade, vai juntando-se ao seu redor uma gosma repugnante e fatal, uma lama fétida, formada por suas dúvidas, preocupações e, finalmente, de cusparadas que ele recebe dos homens de ação, postados solenemente em torno dele na qualidade de juízes e ditadores, e que, com suas possantes goelas, riem dele às gargalhadas. "
"“Perdão, senhores”, hão de lhes gritar, “é impossível rebelar-se: trata-se de dois e dois são quatro! A natureza não lhes pede licença, não se importa com seus desejos e nem se suas leis lhes agradam ou não. Os senhores devem aceitá-la tal como é e, consequentemente, todos os seus resultados também. Um muro, portanto, é mesmo um muro... etc. etc.” Ó meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam? Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo."
"Por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?"
"que eu disse foi: o homem se vinga porque acha que está fazendo justiça. Isso significa que ele encontrou o motivo original, o fundamento, ou seja: a justiça. Disso decorre que ele está tranquilo de todos os lados e consequentemente, efetua sua vingança tranquila e eficiente, pois está convencido de que executa uma ação honesta e justa. De minha parte, não vejo nisso nenhuma justiça, não encontro nenhuma virtude e, por conseguinte, se resolvo me vingar, é unicamente por maldade. A raiva poderia, é claro, suplantar tudo, todas as minhas dúvidas e poderia com pleno êxito servir de motivo original, precisamente porque ela não é o motivo. Mas que fazer se nem mesmo tenho raiva? (Eu comecei, há pouco, falando exatamente disso.) A minha maldade, novamente em consequência dessas malditas leis da consciência, está sujeita à decomposição química. "
"Mas tente abraçar com paixão e cegamente o seu sentimento, sem reflexão, sem buscar o motivo original, afastando a consciência pelo menos temporariamente; sinta ódio ou amor, nem que seja para não ficar sentado de braços cruzados. "
"Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho, como todos nós. Mas que se há de fazer se o único e evidente destino de todo homem inteligente é tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?"
"Eu, por exemplo, tenho um amigo... Mas vejam só! Ele é amigo dos senhores também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Ao se preparar para realizar uma ação, esse senhor começará por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para estar de acordo com as leis da razão e da verdade. Isto não é tudo: ele falará aos senhores com paixão e emoção sobre os interesses humanos normais e verdadeiros, criticará com ironia os idiotas míopes que não entendem nem suas próprias vantagens, nem o verdadeiro significado da virtude e, exatamente quinze minutos depois, sem que haja qualquer motivo repentino e exterior, mas precisamente por alguma coisa interna que é mais forte do que todos os seus interesses, ele aprontará uma das suas, fará claramente o inverso do que dissera pouco antes: agirá contra as leis da razão e contra os próprios interesses, ou seja, contra tudo... Quero preveni-los de que meu amigo é um personagem coletivo, por isso é um pouco difícil condenar só a ele. Mas é aí mesmo que eu quero chegar, senhores. Será que de fato não existe algo que seja mais caro a quase todos os homens do que suas melhores vantagens, ou (para não destruir a lógica) aquela mesma vantagem mais vantajosa (aquela que é sistematicamente omitida, de que falamos antes), que é mais importante e mais vantajosa do que todas as outras vantagens e que, para obtê-la, o homem está sempre pronto, se necessário, a afrontar qualquer lei, ou seja, ir contra a razão, a honra, o sossego, o bem-estar – numa palavra, contra todas essas coisas maravilhosas e úteis, apenas para alcançar essa vantagem mais vantajosa, a primeira, que para ele é mais cara do que tudo?"
"Mas o ser humano é tão apaixonado pelo sistema e pela conclusão abstrata, que é capaz de fazer-se de cego e surdo somente para justificar sua lógica. "
" A civilização desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensações... e nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessas sensações, é bem possível que o homem acabe por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. "
"Pelo menos se pode dizer que, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, tornou-se, com certeza, um sanguinário pior, mais hediondo. Antes ele via no derramamento de sangue um modo de fazer justiça e com a consciência tranquila massacrava aqueles que julgava merecê-lo; hoje, ainda que julguemos que derramar sangue seja uma torpeza, mesmo assim o praticamos, e ainda mais do que no passado. "
"mais: nesse tempo, dizem os senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso já seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de órgão; e que, ainda por cima, existem também as leis da natureza, de modo que, não importa o que ele faça, isso não é feito por sua vontade, e sim por si mesmo, seguindo as leis da natureza. "
"Conseqüentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem não terá mais de responder pelos seus atos, e viver, para ele, será extremamente fácil. Evidentemente, todas as ações humanas serão calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, numa espécie de tábua de logaritmos, até 108.000, e serão inscritos nos calendários; ou, algo ainda melhor: surgirão algumas publicações bem-intencionadas, do tipo dos atuais dicionários enciclopédicos, em que tudo estará tão bem calculado e indicado, que no mundo não haverá mais nem ações nem aventuras."
"então, senhores, que tal dar um pontapé em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota?"
" O que o homem precisa é somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e não importa aonde possa conduzir. Bom, essa vontade, o diabo conhece bem..."
"Um momento, senhores, eu mesmo queria começar dessa maneira. Confesso que até me assustei. Um instante atrás por pouco eu não quis gritar que a vontade depende sabe o diabo de que, coisa que, talvez, devamos agradecer a Deus, mas lembrei-me da ciência e... me calei. "
"Nossos desejos, na sua maioria, são equivocados devido a uma avaliação errada das nossas vantagens. Se às vezes queremos coisas absurdas, isso se deve ao fato de que nessa coisa absurda nós vemos, por burrice nossa, um caminho mais curto para obtermos uma vantagem antecipadamente presumida. "
"Perdoem-me por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada."
"vejam até o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas tão corretas e sensatas, tão sábias e amantes do gênero humano que assumem como seu objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possível para, por assim dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que é possível de fato viver neste mundo de maneira correta e sensata"
"O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos?"
"Os trabalhadores, ao término do trabalho, pelo menos recebem seu dinheiro e podem ir para o botequim e depois podem acabar na delegacia – e têm, assim, ocupação para a semana. Mas o homem para onde irá? Pelo menos, sempre se nota que ele fica um pouco sem jeito quando consegue atingir algum desses objetivos. Ele ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é terrivelmente engraçado. "
"Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato. Para isso não há necessidade de consultar a história universal. Perguntem a si mesmos, se é que os senhores são homens e viveram nem que seja um pouco. Quanto à minha opinião pessoal, penso que amar apenas o bem-estar é, de certo modo, até indecente. Seja isso bom ou não, o fato é que, às vezes, quebrar alguma coisa é também muito agradável. "
"Vejam os senhores: se em vez de um palácio houver um galinheiro, e se começar a chover, talvez eu suba no galinheiro para não me molhar, mas nem assim vou achar que o galinheiro é um palácio, só por gratidão por ele ter-me protegido da chuva. Os senhores estão rindo e dizendo que num caso como esse tanto faz um palácio como um galinheiro. Sim, respondo eu, se o único objetivo de viver fosse não se molhar."
"Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas."
" Além disso, escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio."
"Tanto o autor das Notas como elas próprias são, evidentemente, fictícios. Entretanto, pessoas como o autor destas Notas não só podem como devem existir na nossa sociedade, se levarmos em conta as circunstâncias em que ela de modo geral se formou. Meu propósito foi trazer perante o público, com mais destaque que o habitual, um dos personagens típicos do nosso passado não remoto. Ele faz parte da geração que está vivendo seus últimos dias. Na primeira parte, denominada “Subsolo”, esse personagem faz sua própria apresentação, declara seus pontos de vista e procura explicar os motivos pelos quais ele surgiu e teria de surgir no nosso meio. Na segunda parte vêm as “Notas” propriamente ditas desse personagem a respeito de alguns acontecimentos de sua vida.
Fiódor Dostoiévski"
"Dostoiévski aqui aponta para a ligação do personagem central de Notas do subsolo com a extensa galeria de “homens supérfluos” de que foi pródiga a literatura russa da primeira metade do século XIX. Em uma definição muito breve, seriam as pessoas cujo talento e inteligência não tinham aplicação naquela sociedade e, por falta de uma realização pessoal, tornavam-se amargas e destrutivas. (N.T.)"
“Eu sou único e eles são todos”
"Nossos cretinos o aplaudiram por isso, mas eu me atraquei com ele, e não foi por pena das moças e de seus pais, mas simplesmente porque um inseto como aquele recebia tantos aplausos. "
" E é possível viver se há amor, mesmo sem felicidade. Mesmo com amargura a vida é boa. É bom viver neste mundo, não importa como se viva. "
"Além disso, o homem não pode nunca ser um exemplo para a mulher. São duas coisas diferentes; mesmo que eu me suje, me emporcalhe aqui, não sou escravo de ninguém; venho, vou embora e já não estou mais aqui. Com uma sacudida, já sou outro homem. Já você, de saída é uma escrava. É isso mesmo, uma escrava! Você entrega tudo, toda a sua liberdade. E mais tarde, vai querer romper essas correntes e já não será possível: elas vão prendê-la cada vez mais firmemente. "
"... E depois, como você pode saber? Talvez eu seja tão infeliz quanto você, talvez eu me atire na sujeira de propósito, por desespero. Alguns não bebem por desgosto? Eu estou aqui por desgosto. Diga-me uma coisa: que existe de bom aqui, se nós dois estivemos juntos e um não disse nem uma palavra ao outro, e você, depois, ficou me examinando como uma selvagem, e eu fiz o mesmo com você? Por acaso é assim que se ama? Será que é dessa maneira que as pessoas devem se relacionar? É uma pouca-vergonha, é o que é!"
"depois, a trapaça convive bem com o sentimento"
"Hum... É, pode ser. Entretanto, veja, Liza: as pessoas gostam de levar em conta somente as amarguras. Não levam em conta sua felicidade. Se raciocinassem corretamente, veriam que para todos está reservada uma porção de tudo. E se tudo vai bem na família, Deus abençoa, o marido é bom, ama você, cuida de você, numa família assim é bom viver! Até mesmo se, às vezes, passam por maus momentos, ainda assim é bom. Quem não tem maus momentos? Se você se casar, vai saber por si mesma. Tomemos nem que sejam os primeiros tempos de casada com aquele que você ama: por vezes é tão grande a felicidade! Isso acontece a três por dois. Nos primeiros tempos, até as brigas com o marido terminam bem. Existem algumas mulheres que quanto mais amam seus maridos, mais arrumam brigas com eles. É verdade! Conheci uma assim: “Pois é, eu te amo muito, e é por amor que te faço sofrer, para que você saiba que te amo”. Você sabe que por amor se pode fazer alguém sofrer de propósito? As mulheres são as que mais fazem isso. E ainda ficam pensando: “Em compensação, depois vou amá-lo tanto, vou dar-lhe tanto carinho, que não faz mal torturá-lo um pouco agora”. E em casa todos ficam felizes com vocês, há conforto, alegria, paz e honestidade... Mas há algumas que são ciumentas. Se o marido sai (conheci uma assim), ela não agüenta esperar e no meio da noite corre secretamente para a rua para ver se ele está em tal lugar, em tal casa, com uma certa mulher. Isso já não é uma coisa boa. Ela mesma sabe que não é bom, e seu coração quase pára, ela se castiga, mas ela o ama; faz tudo por amor. E como é bom fazer as pazes depois de uma briga, pedir perdão a ele ou perdoá-lo! Como é bom para ambos, de repente fica tão bom, como se eles tivessem se conhecido novamente, tivessem casado novamente, e o amor deles tivesse começado de novo. E ninguém, ninguém precisa saber o que se passa entre marido e mulher, se há amor entre eles. Não importa qual a briga entre eles – nem as mães deles devem ser chamadas como juízas, nem eles devem falar mal um do outro. Eles próprios devem ser os juízes. O amor é um mistério de Deus e deve ser protegido dos olhares alheios, não importa o que aconteça. Ele se torna melhor, santo, assim. Um respeita mais o outro, e muita coisa é baseada no respeito. E se uma vez já existiu amor, se o casamento foi por amor, por que o amor tem de terminar? Será possível que não haja um meio de mantê-lo? "
"Pois bem, se você tem sorte de encontrar um marido bom e honesto, por que o amor vai acabar? O amor dos primeiros tempos do casamento pode passar, é verdade, mas depois surgirá um amor ainda melhor. Aí então ficarão unidos de alma, todos os assuntos serão resolvidos a dois, não haverá segredos de um para o outro. E, quando vierem os filhos, até os períodos mais difíceis vão parecer felizes; basta amar e ter coragem. Em tal situação, até o trabalho é alegre, e se alguma vez for preciso recusar o pão para dá-lo aos filhos, até isso é motivo de alegria. Pois eles mais tarde vão amá-lo por isso; você estará poupando para si mesmo. Os filhos crescem e você sente que é um exemplo para eles, que é seu suporte, que quando você morrer eles vão levar seus sentimentos e idéias, que eles receberam de vocês, por toda a sua vida, e adotarão sua imagem e sua semelhança. Portanto, isso é um dever muito sério. Assim sendo, como o pai e a mãe não hão de se unir mais estreitamente? "
"Não será isso a felicidade quando os três, o marido, a esposa e a criança estão juntos? Por momentos como esse pode-se perdoar muita coisa. Não, Liza, é preciso que cada um primeiro aprenda a viver, para depois acusar os outros!"
"Não confie tanto na juventude. Aqui tudo passa rápido como um galope."
"Deixe-me sair, gente boa, para eu viver um pouco no mundo! Eu vivi sem viver. Minha vida foi gasta em vão; foi bebida num botequim na Sênnaia. Deixe-me sair, gente boa, para eu viver novamente no mundo!...”
"sórdido, o mais mesquinho, o mais tolo, o mais invejoso de todos os vermes da terra, que não são nem um pouco melhores do que eu, mas que, sabe-se lá por que, nunca ficam constrangidos"
"Um romance precisa de um herói, e aqui foram reunidos intencionalmente todos os traços para um anti-herói, e, o que é mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão muito desagradável, porque nós todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”, e por isso não podemos suportar que nos façam lembrar dela. Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. "
"E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a bater com os pés: “Fale somente sobre si mesmo e sobre suas misérias no subsolo, mas não ouse dizer todos nós”. Permitam-me, senhores, eu não estou me justificando quando digo todos. E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores. Olhem com mais atenção! Nós nem sabemos onde vive essa coisa viva, o que ela é, como chamá-la! Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais."